Em outra postagem, descrevi a natureza da Bíblia e disse que ela tem uma autoridade dupla, ela é a Palavra de Deus e as palavras dos humanos. Agora, gostaria de discorrer sobre a interpretação das Escrituras.
Algumas pessoas dizem que qualquer um pode ensinar a Bíblia da forma que quiser. Quando ouvimos isso devemos demonstrar que desacordamos e acrescentar: “É verdade, você tem razão, alguém pode ensinar a Bíblia do jeito que quiser desde que seja uma pessoa sem escrúpulo algum. Porém, se você é meticuloso no uso dos princípios de interpretação das Escrituras, você perceberá que não se pode controlá-la e sim ser controlado por ela”.
Então, permita-me falar sobre três princípios fundamentais sobre a afirmação cristã básica de que “Deus falou”. Os ídolos estão mortos, eles não falam. Porém, o Deus vivo e verdadeiro fala. Estes três princípios são: Deus falou para ser entendido (princípio da simplicidade); Deus falou em contextos precisos e particulares (princípio da história); Deus falou sem contradizer-se a si mesmo (princípio da harmonia).
Considero este princípio muito importante, porque o Deus em quem cremos é luz e nEle não há trevas. Em outras palavras, Ele se deleita em revelar-se a Si mesmo. Ele não se esconde nas sombras. Então, podemos dizer que a natureza de Deus é revelar-se a Si mesmo, como a natureza da luz é brilhar. E, Ele não é apenas comunicativo por natureza, Ele se comunica através de linguagem.
O propósito da linguagem humana é a comunicação inteligível. Falamos quando temos algo a dizer e queremos comunicar isso. A Bíblia diz que a Palavra de Deus é como “lâmpada para os meus pés e luz para os meus caminhos”. Essa é a convicção fundamental de que Deus falou para ser entendido e isso é indispensável quando nos aproximamos das Escrituras para lê-la e estudá-la. A Bíblia não está perdida na poeira, no vento ou na neblina. Ela não é um livro de adivinhações e enigmas. A intenção de Deus é nos iluminar e não nos confundir. Temos que ter essa confiança ao nos aproximar das Escrituras.
Os reformadores do Século XVI falaram da “perspicácia” das Escrituras, referindo-se à sua transparência. A palavra “perspicácia” vem do Latim ‘perspicere’ e significa o que tem ‘vista atenta’, o que ‘enxerga através’. A palavra é formada por ‘per’, “através de, todo”, mais ‘specere’, “ver, olhar”. As Escrituras têm uma qualidade luminosa. Mas, é verdade que nem tudo o que está na Bíblia é fácil de entender. O apóstolo Pedro escreveu em sua segunda carta dizendo que para ele algumas coisas nas Cartas de Paulo eram difíceis de entender (2 Pd 3:15-16). Se um apóstolo nem sempre podia entender, não seria muito humilde dizer que entendemos tudo. Portanto, o que os reformadores queriam dizer sobre a perspicácia das Escrituras é que a mensagem central delas é plana; é dizer que a salvação é somente por graça, apenas através da fé e exclusivamente em Cristo. O caminho da salvação é bastante claro, inclusive para que uma pessoa com ou sem escolaridade ou uma criança pequena possa entender.
Então, esse é o princípio da simplicidade, quando buscamos o significado plano, natural e óbvio do texto em questão. Os reformadores chamaram isso de o “significado literal”, porém o que eles se referiam era o significado literal em oposição ao alegórico e não em oposição ao figurado. Martinho Lutero, o primeiro grande reformador do Século XVI, escreveu:“Devemos apegar-nos somente ao significado simples e natural das palavras, as quais surgem das regras da gramática e dos hábitos de linguagem que Deus criou entre os homens”[i].
É deixar claro que o sentido natural que buscamos nem sempre é literal (exato, restrito); de fato muitas vezes é figurado. Com frequência, o sentido comum e o contexto irão nos guiar. Podemos ver isso em cinco exemplos diferentes:
A utilização que o próprio Senhor Jesus fez das imagens vívidas. – O Senhor Jesus repreendeu os seus contemporâneos por causa do literalismo bíblico excessivo. Tomemos, por exemplo, João 3, a entrevista que Jesus teve com Nicodemos; Ele disse a Nicodemos: “Tens que nascer de novo”. E Nicodemos perguntou: “Como pode um homem nascer, sendo velho? Pode, porventura, voltar ao ventre materno e nascer segunda vez?”. Então, Jesus lhe diz para não interpretar a Bíblia tão literal, porque Ele não estava falando de um segundo nascimento físico literal, e sim de um nascimento espiritual.
No capítulo seguinte, João 4, Jesus encontra uma mulher samaritana, ao lado de um poço. E lhe diz: “Se conheceras o dom de Deus e quem é o que te pede: dá-me de beber, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”. Ao que ela lhe respondeu: “Senhor, tu não tens com que a tirar, e o poço é fundo…”. Então, Jesus lhe diz que não deveria interpretar suas palavras de maneira tão literal, pois não falava da água do poço de Jacó, e sim da vida eterna.
Também podemos abrir o Evangelho de João no capítulo 6, onde Jesus disse: “Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tendes vida em vós mesmos”. E os judeus discutiam entre si sobre “como pode este homem dar-nos a comer a sua própria carne?” Então, teremos de observar que, em alguns lugares, o autor utiliza de imagens muito vívidas e não podemos tomá-las literalmente.
A utilização de expressões antropomórficas. – “Antropos” significa homem e “morf” forma. Uma expressão antropomórfica é aquela que fala de Deus como se Ele fosse um ser humano. Assim, os autores bíblicos fazem referências aos ouvidos, aos olhos, à boca, ao sopro, aos braços, às mãos, aos dedos, aos pés e inclusive às fossas nasais de Deus. Porém, sabemos, pois o próprio Jesus disse, que Deus é espírito e sendo um espírito Ele não tem ouvidos nem olhos nem nada dessas coisas. Trata-se de expressão antropomórfica, que fala de Deus como se fosse um ser humano.
Um exemplo que gosto muito de mencionar está no livro de 2 Crônicas 16:9, onde lemos: “Porque, quanto ao Senhor, seus olhos passam por toda a terra, para mostrar-se forte para com aqueles cujos coração é totalmente dele (…)”. Nós não esperamos ver um par de olhos passando por toda a terra. Não! Sabemos perfeitamente que esse verso significa que Deus está alerta, buscando pessoas a quem Ele possa ajudar em tudo. Então, estas são expressões antropomórficas.
A utilização da poesia. – Há muita poesia na Bíblia. Creio que o melhor exemplo seja o Salmo 19, que começa dizendo: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (v.1). Mais a frente neste Salmo, o salmista diz que “o sol nasce numa extremidade dos céus, e seu percurso vai até a outra” (v.6). E, em três versículos sucessivos deste Salmo, o sol é comparado a alguém que mora numa tenda, ao noivo que sai da cama nupcial e a um atleta percorrendo o céu (vv.4, 5). Quando isso acontece em três versículos sabemos que não é uma prosa (conversa) e sim uma poesia. Igualmente, isso é uma linguagem figurada e não uma declaração cientifica. Por isso, devemos estar preparados para encontrarmos passagens das Escrituras que são poéticas.
A linguagem do Apocalipse, o livro da revelação. – Este livro está cheio de imagens estranhas e maravilhosas, como o dragão, o Cordeiro e outras. Em Apocalipse 7:9, lemos sobre a multidão que é tão grande que ninguém pode contar; a multidão dos santos redimidos que estão com vestiduras brancas. E, quando um dos anciãos pergunta: “quem são estes que se vestem de vestiduras brancas?” Ele mesmo dá a resposta, dizendo: “São estes os que vieram da grande tribulação, lavaram suas vestiduras no sangue do Cordeiro”. Bom, eu confesso que nunca tentei lavar roupas no sangue de um cordeiro, isso é um conceito bem estranho. E, se tentássemos fazer isso, saberíamos que a roupa não fica limpa. Então, isso é um exemplo e sabemos muito bem o que quer dizer, ou seja: os redimidos que estão em frente do trono de Deus são aqueles que vieram à cruz, onde o sangue do Cordeiro foi derramado e puseram sua confiança em Cristo como Salvador; e, como resultado, eles foram limpos de seus pecados, para poder entrar na presença dele.
A questão da perspectiva pela qual os autores bíblicos estão olhando. – Os autores bíblicos registraram várias coisas do ponto de vista comum do observador. Nós fazemos o mesmo. Muitas vezes falamos que o sol nasce no oriente e se põe no ocidente, mas sabemos que isso não é certo, pois o sol está quieto e é a terra que se move. Porém utilizamos esta linguagem porque é o que o observador vê e pensa. E a Bíblia faz o mesmo com frequência.
Isso nos dá entendimento quanto a algo ainda mais controvertido: o uso das palavras “cada” e “todo”. Deixe-me argumentar que estas palavras não devem ser necessariamente interpretadas em um sentido absoluto. Porque algumas vezes podem ser utilizadas de uma maneira que é relativa para o narrador. Permita-me dar-lhes alguns exemplos.
Em Lucas 2:1 diz: “Naqueles dias, foi publicado um decreto de César Augusto, convocando toda população do império para recensear-se”. Outra versão diz “todo mundo”. Não cremos que isto seja literal, ou seja, que todas as nações ou pessoas foram recenseadas.
Porém, o mais impactante é Atos 2:5 que narra sobre o Dia de Pentecostes e que diz: “Ora, estavam habitando em Jerusalém judeus, homens piedosos, vindos de todas as nações debaixo do céu”. Todas as nações? Com certeza não estava incluída a Austrália, nem a Nova Zelândia ou a América Latina, etc. Na verdade, mais a frente, Lucas mostra o que ele queria dizer com “todas as nações debaixo do céu”, porque nos versículos 9 a 11 ele nos dá uma pista de que este grupo está da bacia do Mediterrâneo. Então, Lucas queria dizer “todas as nações do mundo conhecido”, isto é, que todas as nações do mundo greco-romano estavam representadas ali. Por isso, as palavras “cada” e “todo” algumas vezes são relativas ao observador e a quem fala.
Creio que isto seja informação suficiente para o nosso primeiro ponto, ou seja, Deus falou para ser entendido. Já examinamos o princípio da simplicidade, ou seja, buscar o significado natural do texto. Agora vamos ao segundo princípio.
II. Deus falou em contextos particulares e precisos.
Aqui se encontra o princípio básico da revelação que Deus faz de Si mesmo. Ele não gritou às pessoas de uma distância. Não! Ele desceu ao nível delas. Ele entrou na situação do contexto delas. Falou-lhes inclusive em seus próprios idiomas. Isto é verdade não somente na encarnação do Filho, como também é verdade na inspiração das Escrituras. Deus falou em seus próprios idiomas. Ele contextualizou-se. Ele foi onde estavam as pessoas a quem Ele queria revelar-se. E, a propósito, deveríamos fazer o mesmo em nossa maneira de pregar, nos colocando ao nível das pessoas.
Se o princípio número 1 é o princípio da simplicidade, onde buscamos o significado natural do texto, o princípio número 2 é o princípio da história, onde buscamos o significado original do texto. O que o autor queria ensinar? E como entenderam os primeiros ouvintes de sua mensagem?
D. Hirsch, um professor na Univ. de Virgínia, nos EUA, escreveu um livro muito importante intitulado: “A validade da interpretação”[ii]. Neste livro, Hirsch afirma um princípio vital que espero que memorizemos: “Um texto significa o que o seu autor quis dizer”, em outras palavras, é o autor do texto que estabelece o significado. As perspectivas pós-modernas nos círculos universitários, dizem que o texto é infinitamente interpretável, ou seja, o texto tem tanto significado quanto o leitor queira. Porém, nós dizemos que um texto significa sim o que seu autor quis dizer e pode até ser infinitamente aplicável, porém não é infinitamente interpretável. Pelo contrário, o significado de um texto é estabelecido pelo autor que o escreveu. O texto significa o que o autor quis dizer. Então, nossa responsabilidade é perguntar ao autor o que ele queria dizer quando escreveu isto, como queria que entendêssemos o que escreveu?
A exegese e a eisegese são métodos de interpretação de textos, com significados opostos. A exegese busca o significado original de um texto, enquanto a eisegese consiste em inserir ideias pessoais no texto ou impor ao texto o que não está nele ou o que queremos encontrar nele. O maior erro que podemos cometer ao interpretar as Escrituras é importar ao texto ideias próprias de uma geração posterior. Assim, lemos nossos pensamentos do Século XXI na mente dos autores bíblicos e afirmamos que eles patrocinam nossas opiniões. Isso é algo que não devemos fazer, porém creio que é muito comum entre alguns pregadores.
A palavra exegese vem do grego eksegéomai, que significa “explicar,extrair, interpretar”. Já a palavra eisegese vem do grego eisegeis, que significa “trazer (de fora para dentro) a interpretação de um texto”. Então, enquanto a exegese busca extrair do texto o que está nele, a eisegese coloca no texto o que não está nele.
EXEGESE | EISEGESE |
Consiste em extrair o significado de um texto, respeitando o contexto original. | Consiste em inserir ideias pessoais no texto, distorcendo o seu significado original. |
É um método de interpretação que desafia ideias preconcebidas. | É um método de interpretação mais subjetivo e tendencioso. |
Na exegese bíblica, o objetivo é discernir e discriminar julgamentos sobre as escrituras. | A eisegese bíblica é um método de interpretação que incorpora os pontos de vista do leitor no texto. |
Um exemplo disso é a imagem de Jesus. Um escritor chamado H. J. Cadbury, alguns anos atrás, escreveu um livro chamado “O perigo de modernizar Jesus”[iii]. Ele reconhecia que “está correto apresentar Jesus aos nossos contemporâneos em uma maneira com a qual eles se identifiquem; pois queremos apresentar-lhes um Jesus que está vivo e que é real”. Penso que é certo fazer isso desde que não comprometamos a autenticidade de Jesus construindo-O à nossa imagem.
Por exemplo, Jesus, no princípio da Era Cristã era comparado com João Batista, com roupa de pelos de camelo, quase sempre descalços e só comia gafanhotos e mel silvestre. Mas Jesus não era assim; Ele foi até mesmo chamado de “glutão e bebedor de vinho”. Então, este tipo de Jesus não é o autêntico. Ele foi projetado à nossa imagem, da maneira que desejamos. Um exemplo mais moderno, temos Jesus, o revolucionário; Jesus, um guerrilheiro urbano rural, com olhos cintilantes e barba escura. Porém, novamente, Jesus não era um revolucionário. Esta não é uma verdadeira imagem dele. Jesus já foi apresentado como astro do rock, através do musical de ópera gospel “Jesus Cristo superstar”[iv] que, em algum momento pensou que sabia quem era, mas depois, especialmente no Jardim do Getsêmani, já não estava seguro de Sua própria identidade. Aí, num momento Ele cantava, noutro estava inspirado e noutro estava triste e cansado.
Hoje em dia temos Jesus como o fundador da empresa moderna. Um publicitário americano chamado Bruce Burton escreveu um livro sobre Jesus, onde tenta mostrar que todos os princípios da empresa moderna se encontravam nos ensinos deste jovem judeu, como ele o chamava.[v] Para asseverar essas ideias sobre Jesus, Burton escreveu no final do seu livro: ‘Sabem o que Jesus disse quando era jovem? Não? Jesus disse: “acaso não sabem que me convém cuidar dos negócios de meu Pai?”’. Existe uma variedade dessas imagens e que agradam a muitos. Isso é compreensível, porém precisamos evitar isso. Então, vamos nos assegurar de que, ao apresentarmos Jesus aos nossos amigos não percamos sua autenticidade.
B. O estudo da exegese
A exegese bíblica, quanto ao princípio da história, é a disciplina que requer tanto integridade para recusarmos torcer as Escrituras quanto sensibilidade para utilizarmos nossa imaginação para recriar a situação na qual os autores bíblicos se encontraram. Teremos que travar uma luta para livrar nossa mente das perspectivas e pressuposições modernas, e nos colocarmos na situação dos autores bíblicos. Teremos que recriar seu contexto histórico e entender seu idioma como eles o usaram e como os ouvintes deveriam tê-los entendido. Tudo isso é a disciplina da exegese.
Eu creio que Calvino é o melhor expositor bíblico que Deus deu à Igreja. Ele tinha um entendimento incrível para sua idade no século XVI. Ele disse: “A primeira regra de um intérprete é deixar que o autor diga o que disse e não querer que ele diga o que não disse”[vi]. Portanto, a primeira regra do intérprete é deixar que o autor diga exatamente o que disse e transmiti-lo como tal. Um exemplo disso se encontra no Evangelho de João, quando Jesus estava falando com Nicodemos e lhe disse que teria que nascer da água e do espírito. A Igreja Católica Romana ensina que nascer da água é o Batismo e há pregadores que ensinam o mesmo hoje. Porém isso pode não ser correto porque Jesus instituiu o batismo depois da ressurreição e falou com Nicodemos no princípio de Seu ministério. Então, nossa meta deve ser interpretar como Nicodemos entendeu a necessidade de nascer da água e do espírito.
Bom, nesta mesma época, no rio Jordão, João Batista contrastava a Palavra com o Espírito. Ele disse: “Eu vos batizo com água, porém Ele vos batizará com o Espírito Santo”. Então, o que Jesus disse a Nicodemos foi mais ou menos assim: ‘a menos que você vá a água de João Batista para arrependimento e perdão de pecados, não pode vir a mim e nascer do espírito’. Esta é uma exegese para esclarecer a pergunta: Como Nicodemos entendeu o que Jesus estava dizendo?
Então, até agora, temos visto que, como Deus falou para ser entendido, podemos afirmar o princípio da simplicidade, de buscar o significado natural do texto; e, como Deus falou em contextos precisos, afirmamos o princípio da história para buscar o significado original do texto. Agora veremos o terceiro princípio.
III. Quando Deus falou não se contradisse a Si mesmo.
Este é o princípio da harmonia que busca o sentido geral do texto o qual é iluminado por outras partes das Escrituras. Estes três princípios surgem da verdade que Deus falou e da forma como Ele falou. O que encontramos nas Escrituras é uma combinação notável de diversidade e de unidade. A revelação de Deus é rica em diversidade, em ênfase teológica e meios literários como vimos anteriormente. E, apesar da grande diversidade, a revelação que Deus faz de Si mesmo é consistente em toda a Escritura. Assim, lemos no início de Hebreus que o mesmo “Deus que outrora falou, muitas vezes e de muitas maneiras, aos nossos antepassados, por meio dos profetas, nos últimos dias nos falou pelo Filho” (Hb 1:1-2).
E o propósito geral de sua revelação é evidentemente o mesmo, em uma palavra, é a salvação. O propósito de Deus é chamar um povo para Si. Adotar-nos em Sua família. Transformar-nos na imagem do Filho e enviar-nos de novo ao mundo como testemunhas e servos. E, depois, levar-nos à glória final. Tudo isso é a salvação. De modo que a salvação é uma palavra grande que inclui a totalidade do propósito de Deus para nós em Cristo. Esta é a razão pela qual a Escritura dá testemunho de Cristo. E o grande propósito da Escritura é fazê-Lo conhecido.
Também considero importante lembrá-los que a revelação de Deus é absolutamente progressiva, ou, se preferem, a revelação de Deus é cumulativa. Não é no sentido de que Deus contradiz o que revelou antes, mas no sentido de que Ele amplia o que falou. Muitos dos leitores são professores e outros são pais e, se vocês são sábios, nunca ensinarão a seus filhos ou alunos num momento o que necessitam contradizer em outro. Se fizerem isso perdem sua credibilidade como pais ou professores.
Tomemos a Trindade como exemplo. O Antigo Testamento (AT) enfatiza a unidade de Deus, dizendo: “o Senhor nosso Deus é o único Senhor” e “amarás o Senhor com todo o teu ser”.
Também é certo que o AT tem algumas pistas sobre a pluralidade da divindade. Em Gênesis 1:26 está escrito “façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança”. Isto é uma pluralidade da divindade. Ou, por exemplo, a expressão “Santo, Santo, Santo” (Is 6:3; Ap 4:8). E há muitas outras pequenas pistas sobre a pluralidade, porém a ênfase principal do AT é a unidade de Deus. E a ênfase principal do Novo Testamento (NT) é a trindade. Porém Deus não poderia revelar Sua trindade até que Seu povo captasse Sua unidade completa.
Lutero disse: “Mesmo que lemos a Bíblia para frente, só podemos compreendê-la para trás”. Em outras palavras, devemos deixar que o NT explique e interprete o AT. Infelizmente, a tendência moderna dos teólogos de hoje é enfatizar a diversidade e negar que há uma unidade na Bíblia. Certamente, afirmamos que há unidade nas Escrituras, como Paulo escreveu: “Há um só corpo, um só espírito, um só Senhor, uma só fé, uma só esperança, um só batismo, um só Deus e Pai de todos” (Ef 4:4-6). A unidade é enfatizada fortemente.
O prof. A. M. Hunter, em seu livro “Intoducing the New Testment”[vii] (Apresentando o Novo Testamento), escrito originalmente antes da segunda guerra mundial, disse: “Há uma profunda unidade no NT que domina e transcende todas as diversidades”. Este é o princípio da harmonia que Deus nos deu nas Escrituras, uma revelação ampla, coerente e harmoniosa. Por consequência, temos que estudar toda a Bíblia e aprender a interpretar cada texto à luz do todo. De maneira que devemos renunciar completamente a duas práticas evangélicas muito comuns, que são: Escolher textos aleatórios por um lado e escolher só um texto por outro lado.
Escolher textos aleatórios é o método de escolher textos às cegas. Vale lembrar a história de um jovem que tinha um grande problema e necessitava da direção de Deus. Então, abriu a Bíblia aleatoriamente e colocou o dedo no texto que dizia que “Judas foi e se enforcou” (Mt 27:6). E como isso não foi muito encorajador, voltou a abrir a Bíblia e colocar o dedo numa passagem. Aí leu o seguinte: “Vá e faça o mesmo!” (Lc 10:37). Muito desolado, o jovem abriu a Bíblia pela terceira vez e colocou o dedo num texto e este dizia: “O que tens a fazer faça-o rápido” (João 13:27). Então, é perigoso pegar textos aleatoriamente. De outro lado, recordo que nossas avós tinham algo que chamavam de “caixinha de promessas”. Era uma pequena caixa onde continha algumas fichinhas com diferentes promessas bíblicas escritas nelas. E quando necessitavam de orientação de Deus, fechavam os olhos e tiravam uma fichinha com uma promessa. Não tenho dúvida alguma de que Deus pode nos guiar desta maneira. Não vamos limitar a Deus. Porém, não é a maneira normal como Deus guia o Seu povo. A Escritura não é uma coletânea de frases selecionadas. Isso não seria coerente. Não selecionamos textos aleatoriamente nem tampouco nos concentramos num só texto. Centrar-se num só texto é imaginar que um assunto pode ser resolvido citando um só texto e não é assim. Algumas vezes, pode ser assim, porém a revelação de Deus sobre qualquer tema é muito mais ampla que se pode deduzir de um texto. Devemos conhecer toda a Bíblia para que possamos deixar que as Escritura interprete as Escrituras.
Então, em contraste com estas duas práticas das quais alguns terão que se arrepender, há duas responsabilidades correspondentes: Devemos aprender a sintetizar e a harmonizar. Sintetizar é combinar partes separadas num todo. Um Cristianismo muito popularizado surge quando há um uso seletivo de textos. Por exemplo, nunca vamos desenvolver uma perspectiva bíblica equilibrada sobre o ser humano se não centramos na perversão do ser humano. Eu creio na perversão total. Porém, não se chega a entender o ser humano centralizando apenas nisso. Porque há outras passagens da Bíblia que falam da dignidade do homem. Teremos que aprender a equilibrar a dignidade do ser humano, feito à imagem e semelhança de Deus, e sua perversão, e não deixar uma sem a outra. Nunca vamos desenvolver uma perspectiva bíblica do Estado se nos centramos exclusivamente em Romanos 13, onde se diz que o Estado está a serviço de Deus. Teremos que ir também a Apocalipse 13, onde o Estado se converte em aliado do demônio.
Então, podemos perceber que necessitamos das duas perspectivas. Não há uma sem a outra. Teremos que aprender a sintetizar os ensinos das Escrituras e depois aprender a harmonizá-la. Isto é permitir que a Escritura explique-se a si mesma. Freqüentemente se diz que a Bíblia está cheia de contradições, e não há dúvida de que há passagens que são difíceis de entender porque parece haver muitas discrepâncias. Porém é possível lidar com isso de uma maneira que seja compatível com a integridade intelectual. Nossa tarefa é buscar uma harmonização natural que respeite ambos os lados de qualquer debate.
Então, é especificamente útil descobrir o propósito teológico do autor. E quero dar-lhes como exemplo a aparente discrepância entre os ensinos de Paulo e os ensinos de Tiago em suas cartas. Como sabem, Paulo afirma que “a justificação é somente pela fé” (Rm 3:28). E Tiago afirma “que somos justificados pelas obras e não apenas pela fé” (Tg 2:24). Por isso, Lutero recusou os ensinos de Tiago no Cânon e disse que era uma epístola sem confiança.
Qual é o propósito de Tiago e qual é o propósito de Paulo? Esta é a pergunta que teremos que responder para permitir uma harmonização. Paulo e Tiago estavam respondendo a dois desvios teológicos distintos e tinham oponentes diferentes em mente. Paulo se opunha aos judaizantes, que diziam que a justificação é pelas obras. Tiago se opunha aos intelectualizantes, que ensinavam que a justificação era por uma ortodoxia aparente. Aos judaizantes, Paulo disse: “A justificação não é por obras, mas sim somente pela fé” (Gl 2:16-19). Aos intelectualizantes, Tiago disse: “Não é por uma fé infértil senão por uma fé viva que faz obras” (Tg 2:17-19). Então, ambos esclareceram a natureza da fé autêntica, isto é, que há uma confiança viva que se traduz em boas obras. Em Tiago 2:18 diz: “(…) eu te mostrarei minha fé por minhas obras”. Enquanto que em Gálatas 5:6 lemos uma frase de Paulo, que diz: “(…) a fé que atua pelo amor”. Assim, percebemos que ambos pensavam que uma fé autêntica produz obras, porém Paulo enfatiza a fé que se traduz em obras, enquanto Tiago enfatiza as obras que vem da fé.
Espero que tudo isso esteja claro, porque quando a harmonização não é possível e quando a discrepância insiste em permanecer, me parece que é mais sábio e mais cristão confessar nossa ignorância, de que acusar os autores bíblicos de inexatidão.
Resumindo, a Escritura é um todo coerente e orgânico. Por isso a chamamos “a Palavra de Deus”. A Escritura saiu de uma mente e de uma boca, ainda que tenha tido a intervenção de muitas mentes e muitas bocas. Devido a dupla autoria das Escrituras, esperamos, a priori, uma combinação de diversidade e de unidade. Diversidade devido aos muitos autores humanos e unidade devido ao único autor divino. Isso é exatamente o que Deus nos deu.
Concluo afirmando que a base para que creiamos na autoridade das Escrituras é a nossa convicção de que Deus falou. A base para nossa interpretação das Escrituras é nossa convicção do porquê e como Ele falou. Primeiro, Ele falou para ser entendido, de onde afirmamos o princípio da simplicidade e busca do significado plano, óbvio, natural e do sentido literal do texto. Segundo, Ele falou em contextos precisos e particulares, assim afirmamos o princípio da história, e buscamos o sentido original como os escritores pretendiam que os entendêssemos. E, em terceiro lugar, Deus entregou uma mensagem coerente, sem contradizer-se a Si mesmo, do que afirmamos o princípio da harmonia e a busca do sentido geral que é o sentido através de outras passagens das Escrituras.
Agora, isto não são princípios arbitrários que impomos sobre o texto de maneira artificial. Estes princípios surgem de uma maneira natural e lógica do tipo de Deus que Ele é, que falou, e do tipo de palavra que Ele falou. Essa palavra é simples, contextualizada e coerente.
Que Deus nos ajude a sermos fiéis na interpretação de Sua preciosa Palavra!
REFERÊNCIAS:
Funcionamos com sede em Belo Horizonte desde 2004. Fomos contemplados com o cuidado do Senhor Jesus Cristo, que vem nos fortalecendo dia a dia. Temos a certeza de que este projeto veio dEle e existe somente para Sua honra e glória.
Fique por dentro de tudo!
contato@escaleministries.com.br
+55 (31) 99841-1148
Nos siga nas redes Sociais: