Dupla Autoria da Bíblia

Nelson Salviano

A Bíblia é a Palavra de Deus através de palavras humanas. Por isso, nos aproximamos dela com humildade e reverência (por ser a Palavra de Deus), porém com estudo cuidadoso (pois se trata de palavras humanas).

Os evangélicos sempre procuraram evitar extremos opostos, geralmente chamados de fundamentalismo, por um lado, e liberalismo, por outro. Os chamados fundamentalistas declaram que a Bíblia é a Palavra de Deus e ponto final. Alegam que os autores humanos exerceram apenas um papel passivo e inativo, como se tivessem suspendido suas faculdades durante o processo de inspiração. Já os liberais vão ao extremo oposto, afirmando que a Bíblia é a palavra de homens e ponto final, tratando-a como uma biblioteca de livros escritos por autores humanos, com raros momentos de inspiração divina.

Argumento que nenhuma dessas teorias é completa, pois nenhuma representa fielmente o que a Bíblia diz de si mesma. Os pensadores evangélicos afirmam que a Escritura é tanto a Palavra de Deus quanto palavras dos homens; ou melhor, é a Palavra de Deus através das palavras dos homens.

Vejamos os “Profetas”. Jeremias, por exemplo, introduz o livro com estas palavras: “Estas são as palavras de Jeremias, filho de Hilquias…” e, no versículo seguinte, ele diz que “a ele veio a Palavra do Senhor”. Assim, o que Jeremias falou e escreveu eram suas próprias palavras e as palavras de Deus ditas a ele.

Talvez o melhor contraste esteja em Hebreus 1:1 e 2 Pedro 1:21. No início da Carta aos Hebreus, lemos: “Deus outrora falou de muitas maneiras aos nossos antepassados por meio dos profetas”. Em 2 Pedro 1:21, está escrito que “os profetas falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo”. Portanto, Deus falou através dos homens, e os homens falaram da parte de Deus. Essas duas declarações não são incompatíveis entre si.

Outro exemplo é Isaías 1:20 e Atos 3:21. Em Isaías lemos: “a boca do Senhor disse”, mas em Atos está escrito: “Deus falou por boca de seus santos profetas desde a antiguidade”. Então, de onde vieram as Escrituras? Elas vieram dos lábios de Deus ou dos lábios dos profetas? A resposta é: de ambos. Deus falou por Sua boca, mas através dos lábios dos autores humanos.

A declaração clássica da obra do Espírito Santo na inspiração da Bíblia encontra-se em 2 Timóteo 3:16: “Toda a Escritura é inspirada por Deus (…)”, ou seja, a Escritura é o “sopro de Deus”. Isso não significa que Deus soprou sobre os escritores, permitindo-lhes escrever coisas inspiradas. Tampouco indica que Deus tenha soprado nas Escrituras, transformando-as de documentos humanos em inspirados. Significa que o que os autores bíblicos escreveram foi exalado da boca de Deus. Deus exalou.

A Bíblia também é constituída por palavras de homens, o que é essencial para uma perspectiva equilibrada das Escrituras. O Espírito Santo tratou os autores humanos das Escrituras como pessoas vivas, conscientes, ativas e responsáveis, nunca como máquinas. As Escrituras contêm História, Literatura e Teologia. Já pensou em quanto da Bíblia é narrativa histórica? Quase metade das Escrituras é dedicada a essa narrativa: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, 1 e 2 Samuel, 1 e 2 Reis, 1 e 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Ester, Mateus, Marcos, Lucas, João e Atos.

Os autores bíblicos não eram passivos; eles tinham acesso a documentos humanos e os incorporaram em seus textos. No primeiro capítulo de Esdras, por exemplo, há um documento emitido por Ciro, o conquistador persa, permitindo que os judeus voltassem à Terra Prometida. Era um decreto de um rei pagão, mas Esdras o incorporou em seu livro. Lucas também exemplifica isso: nos primeiros versículos de seu Evangelho, ele explica seu método de pesquisa: “igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem” (Lc 1:3). Lucas era um pesquisador zeloso e sua investigação histórica foi guiada pelo Espírito Santo.

Quanto ao estilo literário, se a inspiração fosse mecânica, com o Espírito Santo ditando aos autores bíblicos o que dizer, esperaríamos uma uniformidade de estilo, mas o contrário ocorre. Encontramos uma extraordinária diversidade literária: narrativa, código legal, poesia, prosa, parábola, salmos, provérbios, literatura de sabedoria, cartas, evangelhos e apocalípticos.

A Bíblia inclui vocabulários e estilos distintos. Alguns autores do Novo Testamento escreveram em grego polido; outros, em estilo popular. Essas características literárias — como gênero, estilo e linguagem — permaneceram intactas durante o processo de inspiração. Cada autor bíblico tinha seu próprio estilo e vocabulário.

A Bíblia também apresenta diferentes ênfases teológicas. No Antigo Testamento, Amós é o profeta da justiça, Oséias é o profeta do amor, e Isaías é o profeta da soberania de Deus. No Novo Testamento, Paulo é o apóstolo da graça e da fé, Tiago o das obras, João o do amor, e Pedro o da esperança e do sofrimento.

O Espírito Santo não suprimiu a personalidade dos escritores bíblicos. Pelo contrário, Ele os preparou e formou, usando sua herança genética, temperamento, cultura, educação e experiências. Por exemplo, através da perspectiva global de Lucas, Ele ensinou sobre a universalidade do Evangelho, uma mensagem que alcança a todos. Dos quatro autores dos Evangelhos, apenas Lucas, por ser gentio e familiarizado com o Mediterrâneo, chamou o Mar da Galiléia de “Lago da Galiléia”.

Esses fatores — pesquisa histórica, formas literárias, ênfase teológica — demonstram que os autores bíblicos inspirados não foram tratados como máquinas, mas respeitados em suas faculdades. Devemos, então, manter juntas as autorias divina e humana das Escrituras, sem contradizê-las. A Bíblia é a Palavra de Deus, pois Deus falou através dos autores humanos. Mas ela também é a palavra de homens, que falaram da parte de Deus. Deus falou Sua Palavra através deles, de modo que as palavras deles eram simultaneamente as palavras de Deus.

Podemos entender essa combinação pela analogia com a natureza de Cristo: assim como Jesus é tanto Deus quanto homem, a Bíblia é tanto a palavra de Deus quanto a palavra dos homens. Uma natureza não anula a outra. Similarmente, não podemos afirmar a origem divina da Bíblia ao ponto de negar a atividade dos autores humanos, nem o contrário.

Dizer que Jesus é o Filho de Deus e ponto final é verdadeiro, mas uma verdade incompleta, que pode levar à heresia do docetismo — a negação da humanidade de Cristo. Para evitar isso, é essencial afirmar que Jesus é tanto Filho do Homem quanto Filho de Deus.

Do mesmo modo, dizer que a Bíblia é a Palavra de Deus e ponto final é verdadeiro, mas incompleto. Isso poderia levar ao fundamentalismo, se não reconhecermos que Deus também falou por meio das palavras dos homens. Os cristãos veem a Bíblia de forma diferente do “corão”, que foi ditado em árabe por Alá a Maomé, ou do Livro de Mórmon, encontrado completo por Joseph Smith. A Bíblia é tanto a Palavra de Deus quanto palavras dos homens.

Nelson Salviano

É ministro do Evangelho, bacharel em Teologia, mestre em Missões e Estudos Transculturais pelo All Nations Christian College (Inglaterra). Especialização em Pregação Expositiva pelo Cornhill Training Center (Londres) e Stephen Olford Centre for Expository Preaching (Memphis, TN, USA).

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